Lin Wen ouviu as palavras de David e ficou surpreso. Ergueu o olhar para o ventilador antigo, que girava com um rangido característico.
Era meio engraçado. Numa época em que a tecnologia de exoesqueletos, implantes e chips avançava a passos largos, aquele lugar maldito ainda usava um ventilador de teto velho e barulhento.
A desigualdade tecnológica era brutal.
Mas espera... Isso não tinha graça nenhuma. Afinal, era 2076 e ele mesmo ainda fumava cigarros tradicionais, não?
Nada muito cyberpunk, hein?
Pensando nisso, Lin Wen passou a mão pela cabeça, tirou o braço do ombro de David e pegou um maço de cigarros amassado da mesa. Acendeu um cigarro barato e deu uma tragada profunda.
— Coff! Coff! — David tossiu com o cheiro da fumaça e olhou para Lin Wen com irritação.
— Você não ouve nada do que eu falo, é? — Lin Wen soltou a fumaça, que escondeu seu rosto por um instante. Seu tom era calmo, mas firme, enquanto observava David.
Gloria havia traçado um caminho para David. Rígido, mas seguro.
Porém, Lin Wen sabia que David tinha sangue de aventureiro. Com a idade, o corpo do garoto fervia, seus ossos rangiam de inquietação. Ele estava começando a se rebelar, a queimar etapas.
Essa era uma era que produzia jovens assim — impulsivos, inconsequentes, sem volta.
— Não me olha assim! Eu só... só acho que ela se mata de trabalhar. Estudar, estudar... Até quando vou ter que ficar nessa? — David ficou nervoso por um instante, mas, lembrando que já era quase adulto, ergueu o queixo com arrogância. — E pare de tentar me ameaçar! Já vou fazer 16, sei o que tô fazendo.
— Não quero ter que bater em você, mas, como a Gloria diz, você cuidou de mim. Só que agora... você não é páreo pra mim, seu velho dodói.
— ... — As palavras de David deixaram Lin Wen em silêncio por um segundo.
— Seu moleque desgraçado.
Resmungando, Lin Wen deu um tapa na cabeça do garoto, fazendo David cambalear e segurar a nuca, rosnando de dor.
— Chega. Vai pra sua aula — Lin Wen disse, rindo.
David não respondeu. Sentou no sofá, tampou o nariz e ficou em silêncio.
— Relaxa, a Gloria já arrumou o software original pra você. Estuda direito. Depois de hoje, você vai ter o mesmo equipamento que esses playbas.
— Mas... eu não quero mais gastar o dinheiro dela — David suspirou e olhou para Lin Wen, com um tom que fez o homem rir.
O pirralho tava tirando sarro dele?
O dinheiro do software veio do MEU bolso!
— Ela é sua mãe, seu idiota. É obrigação dela bancar você. Agora vai, e depois cuide bem dela.
David assentiu, levantou-se e olhou para Lin Wen com raiva. Ele tinha planejado xingar o homem e expulsálo dali... mas, de algum jeito, tinha caído no papo dele de novo.
Bom... não era à toa que eles brigavam tanto, mas ele sempre voltava.
Vestindo o uniforme escolar, David saiu batendo a porta, prometendo a si mesmo que na próxima vez seria mais firme.
Pelo menos... pelo menos ele tinha que parar de sugar o sangue da Gloria, né?
— Ele foi?
Pouco depois que David saiu, a porta do quarto de Gloria se abriu. Ela estava radiante, com as bochechas rosadas, vestindo seu macacão amarelo. Seus cabelos vermelhos estavam presos, revelando uma clavícula delicada e pálida.
Era tudo natural. O que Lin Wen mais amava em Gloria era aquela pequena marca vermelha sob seu rosto — um detalhe que a tornava única. Depois vinham sua clavícula e... bem, suas curvas generosas, que até o macacão largo não conseguia esconder.
— Acabou de sair — Lin Wen sorriu.
— Então vou trabalhar. Ah, e... quer dormir no meu quarto? — Gloria, sempre cuidadosa, começou a guardar os potes e frascos da mesa.
— Não, acabei de acordar. Vou ficar aqui um pouco antes de voltar a dormir.
Lin Wen apagou o cigarro com os dedos e sorriu.
Gloria ergueu o rosto, hesitante.
— Aquela grana...
— Fica com ela. Não se preocupa, veio de fonte limpa — os olhos de Lin Wen brilharam por um instante, e ele recusou a transferência que Gloria tentou fazer. — E mesmo se fosse sujo... quem iria ligar?
Ele riu de si mesmo, afundando no sofá. Olhou para o teto esburacado e murmurou:
— Gloria... esse mundo já tá completamente fodido.
— O que é ilegal... virou o legal.
— ...
Gloria ficou em silêncio, aproximouse de Lin Wen e se inclinou.
Seus cabelos vermelhos roçaram no rosto dele. Então, curvouse e pressionou os lábios contra os dele, num beijo leve.
Ao se afastar, seu rosto estava vermelho — não de vergonha, mas do sangue acumulado por ficar inclinada.
— Mas a gente tem que ter esperança, não é? — ela sussurrou. — Sei que você carrega muitas coisas. David não te entende... e eu também não. Mas eu vou ficar do seu lado. Desde que você não me abandone.
— ...
Lin Wen concordou com a cabeça, apoiouse e devolveu o beijo.
— Gloria, ter você comigo é a melhor coisa.
Ela sorriu, pegou a bolsa e disse:
— Bom, vou trabalhar.
— Toma cuidado.
— Relaxa, pelo menos tenho segurança no trabalho — Gloria abriu a porta, virouse e acenou com um sorriso.
Quando o apartamento ficou vazio, Lin Wen acendeu outro cigarro e fumou em silêncio.
Se não tivesse conhecido Gloria... o que ele estaria fazendo agora?
Difícil dizer.
A verdade é que Lin Wen já estava cansado da vida que levava antes.
Night City era caótica, mas também era um refúgio. Ninguém se importava com seu passado. Ali, ele havia deixado para trás muitos problemas.
**Capítulo 3 - Sasha**
Qualquer um podia se esconder na Noite Perpétua, desde que não chamasse atenção. Mas, para proteger quem ele amava, Lin Wen acabou deixando rastros.
Seja por narcissimo ou não, alguém bonito como ele sempre acaba no meio do caos — e não adiantava fugir. O que aconteceu no dia anterior era a prova. O intermediário talvez só conhecesse uma de suas muitas identidades, mas isso só confirmava o que Lin Wen já desconfiava: as coisas iam ficar perigosas.
Mas ele não tinha intenção de sair da Noite Perpétua. Era um lugar caótico, sim, mas, diferente dos territórios controlados pelos governos, ali a bagunça tinha seu charme.
Esfregando os olhos, ele acendeu outro cigarro e soltou uma baforada, sentindo o gosto barato do tabaco.
— Quanto mais caos, menos leis… e isso é bom?
Ele riu de si mesmo.
David via o mundo de forma superficial, e Glória era a barreira que o mantinha longe da "realidade". Mesmo assim, o garoto sonhava em pegar uma arma, modificar o próprio corpo e virar um mercenário, correndo atrás daquele sonho suicida de ficar rico da noite pro dia.
— Que mundo de merda… Vai pro inferno, sua puta—
Ele murmurou, baixando a cabeça.
---
— *David Martinez, por favor, não fique bloqueando a entrada. Isso atrasa os outros alunos.*
A voz eletrônica ecoou pelo corredor. David mordeu o lábio e entrou na sala.
Dentro, a professora — uma projeção holográfica azul — dominava o espaço. A luz amarelada do teto se misturava ao brilho artificial, criando um reflexo que fez David levantar o braço para se proteger.
E, mal ele pisou na sala, já sentiu os olhos de todos sobre ele.
Zombaria, desdém, raiva… Um simples olhar era suficiente para captar todas as emoções, menos admiração ou alegria.
*Não sou como eles*, pensou. *Mesmo tendo um corpo humano, sem modificações extremas, nunca serei um deles. Eles não usam implantes por escolha. Eu, porque não tenho dinheiro.*
Ignorando os olhares hostis, ele se dirigiu ao seu lugar, deitou na cadeira e colocou o dispositivo de conexão.
Mas, quase imediatamente, uma voz familiar invadiu seus pensamentos.
Tanaka. Aquele som irritante.
— Eu troco amanhã, pode parar de encher o saco—
O jovem de cabelo azul ao lado revirou os olhos e sorriu com desprezo. A voz voltou, direto na mente de David.
— Trocar? Roubar, você quer dizer. Cuidado, ou eu te denuncio.
David não respondeu. *O que eu fiz pra esse cara me odiar tanto?*
— Estou falando com você, David Martinez—
Como David continuou quieto, Tanaka virou o rosto com um suspiro de tédio.
— Não entendo por que alguém como você, sem um centavo no bolso, insiste em estudar na Arasaka. Acha que boas notas vão te salvar?
*Bip.*
David cortou a conexão. Finalmente, silêncio.
— *Aula iniciada*—
O ambiente ao seu redor começou a mudar, mas antes que ele pudesse se aprofundar no virtual…
*Click.*
Um ruído agudo no dispositivo fez seu coração parar.
*Merda. Aquele filho da mãe jurou que não daria problema!*
*…A mamãe vai me matar.*
Mal o pensamento passou, a professora holográfica começou a falhar. Sua cabeça se inclinou bruscamente, manchas escuras apareceram em seu corpo virtual, e um barulho de interferência tomou conta.
*CRASH!*
As luzes do teto explodiram, mergulhando a sala na escuridão por um instante.
Os murmúrios de irritação começaram.
Duvidar que o problema era culpa de David? Impossível.
— David Martinez! — Tanaka se virou para ele, punhos cerrados.
David ignorou, mas sua boca tremia.
*Quanto custa um conserto desses?*
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No *Afterlife*, no Pequeno Chinatown de Watson, o movimento nunca parava. A qualquer hora, o bar estava lotado de marginais de todos os tipos. O antigo necrotério era o lugar predileto de mercenários e o maior ponto de troca de informações da Noite Perpétua — com bebidas que deixavam a desejar.
Numa sala usada para noites de farra sem fim, o cheiro de álcool e cigarro se misturava ao vômito azedo. O lugar estava destruído — corpos jogados nos sofás em posições ridículas: um de bruços, outro com a boca aberta roncando, outro ainda tentando apalpar alguém no escuro.
— Sasha, tá olhando o quê?
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